"Se eu pudesse, agarrava-te todos os dias nos meus braços, cantava-te músicas de embalar até fechares os olhos, lia-te estórias e inventava-lhes um fim, deitava-te nos meus braços e esperava que adormecesses, entrava nos teus sonhos e pintava-os de cores e sons perfeitos, depois acordava-te ainda cedo, devagar, abria três dedos da persiana, punha John Cale ao piano, pegava-te nas mãos até acordares, trazia-te o pequeno almoço à cama, Corn Flakes e uma maçã verde, dançávamos como sempre fazemos, depois punha o banho a correr e ficava quieta, à espera que começasses o teu dia ao meu lado, sereno, seguro, tranquilo, pacificado contigo e com o mundo.
Se eu pudesse, plantava ramos de alfazema mágicos que cresciam até ao fim do dia, apanhava-os e espalhava-os pela casa e desfazia folhas nas gavetas, pendurava os quadros que não sabes onde pôr, lia os teus livros e escrevia-te cartas de amor, depois sentava-me no sofá a olhar lá para fora e a pensar que não há nada melhor na vida do que amar...
Se e pudesse, os comboios andavam mais depressa, os aviões não faziam barulho, não havia portagens e as auto-estradas eram automáticas, punha um carro numa faixa e a estrada andava sozinha, chegava aí num instante, tinha tempo para estar e regressar, ou então metia-te num avião e levava-te para um lugar onde nunca fomos, tu ías de olhos vendados e tampões nos ouvidos, não sabias nada mas confiavas em tudo; então chegávamos a um canto sossegado, perdido dos homens e do mundo, deitava-te em cima de uma cama enorme e branca e amava-te durante horas e sem tempo, até adormeceres outra vez nos meus braços. E de olhos fechados, podias imaginar a vida que sonhas mas ainda não conheces, podias ver o futuro a passar-te à frente, fazias as pazes com o teu passado e percebias que podemos ter aquilo que sempre quisemos, que nada é impossível quando o que queremos é verdade e está certo.
Se eu pudesse, voltava ao princípio e ía mais devagar, falava mais e ouvia-te menos, oferecia-te um dicionário com todas as palavras que não conheces ou já esqueceste, tolerância, confiança, transigência, partilha, abnegação, construção. Depois embalava-te outra vez nos braços e esperava que o dia seguinte trouxesse atrás de si outro e mais outro e deixava a vida fluir, esquecia-me dos teus defeitos e tu dos meus e com o tempo aprenderíamos a viver um com o outro sem nos cansarmos, sem nos magoarmos, sem sombras nem equívocos...
Se eu pudesse, levava-te agora para casa, sentávamo-nos à lareira a conversar, explicava-te porque é que um dia reparei que existias e, sem querer, me esqueci do meu coração entre os teus dedos...
Se eu pudesse... mas não posso, porque ninguém caminha sozinho, uma ponte só se contrói se as duas margens deixarem e o rio só corre se a corrente o empurrar. E eu não sou mais do que uma gota de água nesse rio parado, uma peça perdida de uma ponte desmantelada, um mapa riscado que se esqueceu de todos os caminhos, uma folha em branco que perdeu a caneta, um estandarte sem bandeira, uma voz sem som, uma mão sem a outra. Falta-me a tua voz, o teu desejo, o teu querer, o teu poder. Falta-me uma parte de mim que te dei e que agora já não podes devolver.
Um dia ainda havemos de nos entender."
(Autor anónimo) Uma crónica perdida entre outras tantas folhas de uma revista.